A hora dos ruminantes (contém spoiler)
Livro de José J. Veiga lançado em 1966, virou roteiro de cinema em 1967, mas nunca foi filmado[1], suas obras são associadas ao realismo mágico. Lembrando que Gabriel Garcia Marques publicou Cem anos de solidão em 1967 e é considerado o maior, nesse gênero, na América Latina. É um livro que me prendeu pela descrição simples da natureza, coisas que só percebemos em cidade pequena, quando o tempo nos possibilita a contemplar coisas que passam despercebidas na agitação da vida urbana. Por exemplo: “A friagem até então contida nos remansos do rio, em fundos de grota, em porões escuros, ia se espalhando, entrando nas casas, cachorro de nariz suado farejando (pág 01)”; “A água cochichava debaixo da ponte, fazendo redemoinho nos esteios, borbulhando, espumando (pág. 02).”
Tentei ficar atenta aos detalhes, mas me perdia toda vez que aparecia o nome da cidade, MA-NA-RA-I-RE-MA que eu tinha que parar, reler, pois o nome não fluiu fácil durante a leitura. Acho que comecei a leitura comparando Macondo (cidade fictícia de Cem anos de solidão), muito mais fácil de ler que MA-NA-RA-I-RE-MA.
Uma cidade pequena que faz muito frio (fictícia – do interior de Goiás), uma vez que o autor nasceu em Corumbá de Goiás, e um mistério que envolve cães, bois e homens. O livro é dividido em três partes: A chegada; O dia dos cachorros e; O dia dos bois.
A edição que li[2], a capa, já traz um mistério, apresenta olhos amarelos de algo ou alguém escondido atrás da moita. Quem já morou no interior (ou saiu na noite escura no meio rural) conhece bem esses olhos.
“Manairema já não se preocupava tanto com os homens, e quando alguém falava neles era como quem se refere a realidades familiares – o calor, doenças, a carestia – o acostumado, o absorvido (pág. 14)”.
Uma pacata cidade do interior que amanhece com a chegada de muitas pessoas desconhecidas que se instalam as margens do rio, a cidade fica alvoroçada sem saber o que essas pessoas querem, o que vão fazer, são bons ou são maus? Depois a cidade é invadida por cães, não dez nem doze, mas muitos cães, um “derrame de cachorros” que assustam os moradores e mostra que talvez os “forasteiros” não fossem tão bons assim, tudo indicava que eram deles os cachorros.
“Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas, consolando-se em pensar que não há mal que sempre dure” (pág 36).
“Foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória (pág. 37)”
E simplesmente, os cachorros desaparecem a cidade volta a sua vida, falando dos forasteiros novamente e, quando está se acostumando, surgem os bois, milhares, por todos os cantos, pressionando e prendendo as pessoas em casa, transformando a vida dos morados que não tem mais como sair e se comunicar. As crianças e jovens passam a ajudar pois são os que conseguem subir por cima dos bois e ir e vir levando mensagens e tendo uma noção da dimensão da invasão. Contei essa história para o meu filho e, neste momento ele fica incrédulo, mas logo abre um sorriso quando falo que em um dado momento os bois desaparecem deixando apenas o mau cheiro. Ele fica feliz que a cidade voltou ao normal, “menos mal né mamãe!”.
Como os moradores reagem ao desconhecido?
Medo, opressão, tempos de ditadura ou descrição do progresso de forma alegórica. Clima de mistério e um final de esperança. Eu também fiquei feliz e aliviada que os bois desaparecem, num passe de mágica. Eu penso que os livros com títulos de A HORA de alguma coisa é para tentar realçar o instante de algo, no caso aqui de ruminar, bois ruminam, será que sabem que ruminam? Será como o serrote (cavalo de Manuel) “acordou e saiu arrastando a carroça em passos lerdos, como quem cumpre uma condenação sem prazo, sem esperança de livramento. Pensando bem, o Serrote não era o mais infeliz; ele pelo menos sabia, ou parecia saber; mas, as pessoas? (pág. 44)”.
Yumie Okuyama
Escrito em 25/04/2025 livro escolhido para leitura do clube do livro, Estado de Goiás.
[1]A hora dos ruminantes. Spotify, 2023. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/1vrUpOisERb6C77kx7W3Ec?si=sKG3jo3iSDSeggxsfd9d-g&context=spotify%3Aplaylist%3A37i9dQZF1FgnTBfUlzkeKt&nd=1&dlsi=d956926421e647a6> Acesso em: 25/04/2024.
[2] Veiga, José J. A hora dos ruminantes. Rio de Janeiro 31ª Ed: Bertrand Brasil, 1996.
Excelente reflexão!!
ResponderExcluir- Bruna Bittencourt
Obrigada Bruna! Alegria em te ver aqui ;)
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