Tocar


Ela está no quarto, percebe que o dia está amanhecendo, vê a luz permeando a janela e a intensidade da luz vai aumentando suavemente. Percebe que é hora de acordar. São seis e meia, vai se levantando devagar, sentindo o peso das pernas, desliga o ar-condicionado, abre as janelas laterais para entrar um pouco mais de luz. Percorre o caminho da sala, vai abrindo o quarto das crianças deixando a luz e o calorzinho do sol avançar e tocar as pernas de seus filhos. Ela volta para o quarto para se trocar, escuta o barulho do processador e logo em seguida sente o cheiro do café coado. Ele acordou cedo.

 

– Bom dia, amor! – Camila exclamou. – Saiu cedo hoje? – Como estava o mar? 

Enquanto ele respondia percebe que suas violetas na floreira da janela não resistiram ao calor intenso. Sentiu melancolia.

– Estava bom como sempre. – Ele respondeu. – Ondas pequenas, o dia amanheceu especial hoje, uma luz rosada, estava lindo! – E você, tudo bem? – Vai Surfar hoje?

– Minhas violetas, vou ter que plantá-las de novo ou trocar de lugar. 

– Eu só vi violetas lá no Sul, acho que o clima aqui não favorece.

– Tudo bem, vou tentar de novo!

– Por que você insiste tanto com elas? – Tenta outra planta.

O telefone toca, ela imerge em pensamentos – imagina que fosse o seu pai a convidando para uma pescaria para conversar e combinar a viajem com seus netos.

– Amor, amooor ... CAMILA, acorda!! Para que mundo você foi?

– Ah amor, quem era cedo no telefone? 

– Era do trabalho, vou ter uma reunião no meio da manhã, estamos ampliando algumas coisas lá na empresa o planejamento estratégico está acontecendo – Eduardo sorriu. – Camila estou indo, já arrumei as crianças. Hoje é quarta eu quem vou buscá-los.

– Está bem Amor, nos vemos à noite! – Vamos amores para a escolinha!

– Eu não quero ir, não gosto da escola! – Disse um dos filhos.

– Ai, ai, não me venha com essa Gus. – Tom pegue a sua mochila e vamos!

 

Ultimamente ela se perde em memórias e fantasias a respeito do seu pai, como seria se ele estivesse presente neste mundo. Ele adorava pescar e levava Camila sempre com ele. Pescavam em pequenos riachos no caminho de Taquara ou no litoral, na barra de Tramandaí. E Camila ficava imaginando-o pescando aqui na Pedra do Xaréu. E, percebe que é difícil pensar em como seria algo que não tem a menor possibilidade de ser.

 

Camila deixa as crianças na escola depois de ter que parar duas vezes no caminho para apartar as brigas dos filhos, e ajudá-los a se regular emocionalmente. Tudo era motivo, uma caneta que um pegou e o outro não. Uma música que toca na rádio um quer ouvir o outro não e assim respira, para o carro, pega outra caneta, combina que vamos ouvir uma música e depois o outro escolhe. 

Depois de deixá-los, Camila passa em uma loja de plantas para comprar as violetas e fazer uma nova tentativa de cultivá-las. Dirigindo de volta para casa imerge: 

 

Tento encostar a mão no fundo. Fico suspensa no meio – entre o fundo e a superfície. Solto bolhas de ar para facilitar a descida (...)

 

Era maio de 1995, inverno gaúcho. Atravessei a rua e fui para casa do meu melhor amigo, nos reuníamos para brincar, ouvir músicas tocadas por ele no violão. Uma idade em que estávamos deixando de brincar e passávamos a nos reunir, deixávamos as brincadeiras de esconde-esconde, passa anel. Mas ainda, jogávamos vôlei, sete cortes, taco no meio da rua, como também o jogo da verdade e verdade e consequência. Uma pré-adolescência longe de mídias sociais. Sem celular na mão. As vezes não fazíamos nada, absolutamente nada e estava tudo bem!

Abriram o portão, entrei. Estavam todos na mesa da cozinha. Pergunto se o Jonas estava em casa. Me responderam que sim, está no quarto. Sigo passando pela porta da cozinha para subir as escadas quando sou surpreendida por uma voz firme e inquisidora da irmã dele, dizendo: o que você está fazendo aqui? Camila, você deveria estar em casa com a sua família. Fiquei assustada, um pouco envergonhada e depois me senti culpada por estar ali e não estar em casa cuidando do meu pai ou passando tempo com ele. As coisas eram confusas, ninguém falava direito, ninguém explicava o que estava acontecendo. Parecia que eu estava fazendo algo errado. Só queira estar com meu amigo, alguém que me sentia bem para não falar sobre o que estava acontecendo lá em casa. A vida estava confusa nos últimos meses. As idas e vindas do hospital. 

No mês seguinte minha avó foi lá para casa passar uns dias. Minha mãe ainda mais distante. Era um domingo de junho, minha avó passou o dia andando de um lado para outro, estava muito apreensiva, era noite, toca a campainha. Eu vou abrir a porta, sabia que era minha mãe vindo do hospital. Na maioria das vezes sentia a necessidade de que me explicassem algo, não tinha coragem de perguntar e as pessoas também não tinham coragem de falar – doenças, perdas, situação financeira. Abro a porta, minha mãe estava encostada na porta da garagem de frente para mim – acho que foi a primeira vez que olho a minha mãe nos olhos. Os olhos dela estava chorando e me olhando com pena, hoje acho que por dentro ela gritava de desespero e se perguntava o que eu vou fazer agora sozinha com uma filha. 

Muita agitação tomou conta, a casa ficou movimentada, a mãe de uma amiga que era enfermeira estava lá em casa toda de branco monitorando a pressão da minha avó que estava sentada na escada. Era frio, estava ficando muito frio e nada que eu vestisse aquecia o coração o dia estava acabando e a noite chegando. Já não estava mais em casa. Não sei onde estava a minha mãe. Fui para o carro com uma amiga, colega de escola a filha da enfermeira que estava carinhosamente cuidando da minha avó. Ela ficou a noite inteira comigo. Ela me fazia rir os vidros do carro chegavam a ficar embaçado com o calor da amizade. Por um instante, nem parecia que era inverno e que estávamos num velório. O dia amanhece, névoa, frio fora do carro uma agitação desproporcional, em alguns momentos consiguia olhar a minha volta e ver pessoas conhecidas, queridas, elas caminhavam de cabeça baixa, mas logo a agitação toma conta de novo e quando percebo estou de frente para uma caixa comprida e aberta, um rosto inchado se destaca, sério e tranquilo, tirando o algodão de dentro do nariz era ele, meu pai. Estava diferente de quando me pedia beijos. Vão arrastando a tampa e o caixão se fecha. Nesse instante tudo vira água, lágrimas, sinto muita movimentação. Não acho mais os olhos da minha mãe, talvez tenha me perdido dela.

Vejo minha mãe abraçando meu tio ele chegou com a família, dirigiu a noite toda, 900km de viagem, vieram só para o velório. Meu primo me abraçou.

As noites não foram fáceis. Pedi para dormir com ela e ela me disse que eu precisava ser forte. Me deu um beijo e saiu do quarto. A luz do abajur ficou acesa. A porta entreaberta. Alguns dias depois, viajei com meu primo para a casa dele, fomos sozinhos de ônibus me senti mais velha apesar de ser apenas um ano mais velha que ele, foi um evento importante: viajar sem nenhum adulto para São Paulo. A responsabilidade afastou a dor. Não faço ideia de como foi para ela o que se passou nesses dias em que eu estive fora, não falamos sobre. De volta em casa, iria começar as aulas, ela pediu para Beto me ensinar a dirigir no Passat marrom depois dele terminar o expediente, já tinha tido umas aulas com o meu pai e foi fácil aprender, estudava de manhã e dirigia no final de tarde. Aprender a dirigir me animou.

Tive que frequentar o SOE na escola, não gostava da psicóloga, algo não me ligava a ela. Não falava nada e percebi que se eu fosse bem nas aulas, na escola não precisaria falar sobre mim e foi assim, fácil. Mostrando resultado as pessoas te deixam em paz. Não precisa ser a melhor só o suficiente para passar e não ter que falar nada sobre o que eu sentia. 

 

(...) Sem ar me desespero para voltar. 

 

Chegando em casa Camila desce do carro feliz com as violetas e com o saco de terra, pega alguns apetrechos para ajudar a mexer na terra e leva tudo para a janela da cozinha. Tira as que não deram certo, remexe a terra com as mãos mesmo planta as novas violetas na floreira da janela. Lembra que no Sul, sua vizinha tinha as violetas nos vasos pequenos dentro de casa. Resolve deixar algumas nos vasos do lado de dentro.

Ela lembra que começou a plantar as violetas quando ainda dava aulas, uma amiga colega de trabalho perdeu o pai, amigo próximo também colega de trabalho e ela foi inundada de emoção, compaixão sentiu tanto como se fosse o seu próprio pai e ela tocou uma dor que deveria ter sentido anos atrás e lembrou do livro: violetas na janela que deram para ela ler. As folhas das violetas têm o formato de coração.

Após mexer na terra e de sentir-se acolhida pelas violetas ela resolve sentar-se e escrever um pouco. Antes ela olha para o espaço da sala, observa a luz já do lado poente entrando e as sombras dos móveis apareciam do outro lado, o vento suave cruzando a sala, olha o relógio as crianças vão chegar em breve, percebe o violão em pé apoiado no suporte decorando a sala. Ela então lembra que de tempos em tempos tenta aprender violão já alguns anos sem muito sucesso percebe que é difícil tocar. No mesmo instante se emociona e algumas lágrimas escorrem pelos seus olhos e chegam a tocar o teclado do seu computador enquanto 

 

Escrevo: (...) Quando era criança era tão fácil mergulhar na piscina de plástico e simplesmente tocar o fundo. Não estou mais nessa piscina. Hoje mergulho no mar e não quero só tocar o fundo. Quero ver o que tem lá embaixo. Segurando o ar para poder voltar e respirar. Amar.

 

Yumie Okuyama

 

Imersão. 

Tento tocar o fundo. Fico suspensa no meio – entre o fundo e a superfície. Solto bolhas de ar para facilitar a descida (...)

(...) Sem ar me desespero para voltar.  

(...) Quando era criança era tão fácil mergulhar na piscina de plástico e simplesmente tocar o fundo. Não estou mais nessa piscina. Hoje mergulho no mar e não quero só tocar o fundo. Quero ver o que tem lá embaixo. Segurando o ar para poder voltar e respirar. Amar.


Yumie Okuyama - Escrito em 21/03/2024 Revisado em 19/04/2024


Treino de escrita 20 

Escreva um conto ou poesia que tenha como temática uma vivência traumática.

 

 

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